Nampula (IKWELI) – Crianças e adolescentes deslocadas de Cabo Delgado instaladas no Centro de Reassentamento de Corrane, no distrito de Meconta, na província nortenha de Nampula, já começam a sonhar com um futuro risonho para a sua vida longe de conflitos armados que perduram nas suas aldeias de origem desde o ano de 2017.
Dados partilhados pelo Ministério do Género, Criança e Acão Social, em 2021, indicavam cerca de 31 mil crianças na condição de deslocadas, devido ao terrorismo em Cabo Delgado, a maioria sofria de transtornos psicossociais, tais como depressão, ansiedade generalizada, pânico e fobias sociais.
São crianças que devido ao terrorismo naquele ponto do país foram obrigadas junto de suas famílias a abandonarem suas zonas de conforto, amizades, escolas para começar do zero num ponto completamente diferente do seu habitual.
Inicialmente eram milhares de crianças que tinham sido acolhidas pelos nativos de Meconta, Nacala, Eráti e distrito de Nampula, entretanto, com o surgimento da Covid-19, o governo e parceiros decidiram arranjar um espaço fixo para alojá-los, tendo sido instalados em 2020 no Centro de Reassentamento de Corrane.
Naquele espaço, foram criadas condições básicas para receber os deslocados, desde atribuição de espaços parcelados, com rede de abastecimento de água, energia elétrica, escola e uma tenda montada para cuidar da saúde dos mesmos.
Hoje, cinco anos após a integração dos deslocados, o Ikweli fez-se ao Centro de Reassentamento de Corrane que alberga, actualmente, 1070 famílias deslocadas e um universo de 4600 pessoas. E o objetivo era, essencialmente, entender como vivem as crianças passada a metade de uma década e quais políticas terão sido adoptadas para ajudar na sua reintegração.
No terreno, foi possível vislumbrar um ambiente calmo, onde jovens, adolescentes e crianças, corriam livremente, e outras ainda carregavam nas costas ou nas mãos material escolar em direção à escola.

Tabuley Zito, adolescente de 17 anos de idade, vive no centro desde 2020, após ter fugido do distrito de Muidumbe, na província de Cabo Delgado, devido ao conflito armado que teve o seu início em 2017.
Na altura da fuga, Tabuley frequentava a 4ª classe, mas devido a situação teve que abandonar os estudos para se salvar.
“Havia muita guerra”, afirmou com a voz trémula, tendo acrescentado que “fugimos para Nacala, continuei a estudar lá, mas não era mesma coisa. Em 2020 tiraram-nos de lá por causa da Covid-19 e deram-nos esse espaço.”
Já em Corrane, na companhia dos seus pais, Tabuley Zito teve a oportunidade de ser integrado na escola básica situada na vila, “onde fiz a minha 6ª classe.”
Actualmente encontra-se a frequentar a 10ª classe na Escola Secundária de Corrane, sem perspetivas de voltar a sua província. Seu maior sonho é ser psicólogo e explica, “apesar de que na altura era muito mais novo, mas consegui perceber que muitas crianças sofreram com a guerra lá em Cabo Delgado e isso mexeu muito connosco.”
Abdul Momade de 14 anos de idade disse ser natural do posto administrativo de Chai, no distrito de Macomia, e não se lembra do nome da escola em que estudou quando vivia naquele ponto da província de Cabo Delgado.
Agora em Corrane, Momade frequenta a 7ª classe. Apesar das saudades que tem da sua casa em Cabo Delgado, o mesmo não vê a possibilidade de regressar. “Eh… sinto saudades de viver lá e dos meus amigos em Chai, mas aqui estamos bem, não tem guerra.”

Maicha Sumail, de 14 anos de idade, encontra-se igualmente a frequentar a 7ª classe em Corrane e conta que a realidade do seu distrito em Cabo Delgado fez-lhe fugir com seus pais. “As coisas não estavam boas, vimos muitas pessoas a morrerem por causa da guerra. Apesar da saudade que tenho da minha casa, prefiro ficar aqui porque estamos seguros e não tem pessoas a matarem os outros.”

O chefe do posto administrativo de Corrane, Júlio da Costa, disse que actualmente o centro conta com cerca de 6004 crianças, e o seu estado psicossocial é motivador, visto que as mesmas mostram vontade de traçar novo rumo para as suas vidas.
“Tudo leva a crer que as crianças foram muito bem acolhidas e sentem-se à vontade, uns estão a estudar na escola básica de Corrane e outros na escola de Mucupace que é da comunidade acolhedora. Elas têm tido todo o tipo de apoio, em material e lanche escolar.”
“Integração escolar foi desafiadora”
Aquando da chegada das crianças deslocadas no Centro em 2020, o governo criou condições para que de imediato fossem integradas nas escolas, e uma delas foi a de Mucupace, que nos anos de 2021 e 2022 acolheu mais de dois mil alunos deslocados.
No entanto, um dos maiores desafios esteve relacionado com a integração das crianças nas respetivas classes, uma vez que, muitas delas perderam seus documentos e processos durante a fuga.
O director da escola de Mucupace, Maolana Óscar, explica que as crianças eram integradas nas classes de acordo com as idades, mas, houve casos em que os pais referiam que “meu filho estava a fazer a 6ª ou 7ª classe e porque devíamos integrar acabávamos colocando, mas não sabiam escrever nem ler. No entanto, os professores foram preparados para lidar com essa situação, ou seja, crianças com 9, 10 anos em diante era só enquadrá-los em qualquer classe, ou mesmo dizendo que estavam na 10ª tínhamos que enquadrar na escola secundária.”
Houve ainda maior desafio na componente da comunicação entre os professores e os deslocados, mas também a própria relação entre os alunos nativos, pois maior parte do tempo passavam isoladas.
“Devido ao episódio de guerra que eles passaram, eram crianças que muitas vezes ficavam no canto sozinhas, não conversavam com ninguém e andavam sempre com medo, qualquer barulho era motivo de fuga, não podiam ver carros ou até mesmo organizações que vinham para visitar que se punham a correr. Mas também eram crianças que qualquer coisa reagiam com agressão, na altura era uma forma delas de proteção, mas agora já não há isso.”
E passou a ser uma escola que na sua maioria acolhia crianças deslocadas, em 2024 por exemplo, foram inscritos 1.345 alunos reassentados em ambos os sexos e deste número, apenas 499 eram nativos.
“Nós até chamamos por escola de deslocados porque maior número são deslocados”.
Com um total de 36 turmas para apenas cinco salas de aulas para os dois turnos, na altura, a escola tinha menos que 25 professores para cobrir o rácio, no entanto, o número de alunos reassentados reduziu em 2022, devido ao regresso dos deslocados as suas zonas de origem.
“Em 2023 e 2024 o número reduziu, pois devido a aparente calmaria em Cabo Delgado, pais e encarregados de educação decidiram voltar para a província tirando as crianças da escola. Em 2023 tivemos 26 turmas e 2024, 21 turmas e este ano também estamos a prever o mesmo número, 21 turmas, segundo dados preliminares das nossas estatísticas, ou seja, esse número contra 10 professores cada um deles com duas turmas”.
Mesmo com a oportunidade de se formar, desafios prevalecem…
Um ano após a instalação, a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e o Instituto de Formação Profissional e Estudos Laborais Alberto Cassimo (IFPELAC) lançaram um projecto de formação-profissional para mais de 200 jovens deslocados e residentes das comunidades de acolhimento.
O apoio da ACNUR para este projecto totaliza mais de 11,7 milhões de meticais, que financiaram a formação de jovens moçambicanos em nove áreas, nomeadamente Carpintaria, Serralharia Civil, Técnica de fabrico de blocos, Pedreiro, Canalização, Secretariado, Frio e Climatização, Pintura Civil e Electricidade Instaladora. Uma formação que visava prover ferramentas e aptidões de vida, bem como oportunidades de aprendizagem.
Entretanto, apesar da iniciativa, alguns pais e encarregados de educação das crianças e jovens deslocados, dizem que os seus filhos estão a enfrentar desafios relacionados com o autoemprego, devido a fraca procura dos seus serviços após a formação.
Tal como avançou Angelina Ali, de 49 anos de idade, mãe de 9 filhos, dois dos quais concluíram o ensino secundário, participaram na formação no curso de mecânica, no entanto, tem enfrentado dificuldades para dar seguimento a vida de empreendedor.
“Eu tenho duas crianças que terminaram a 12ª classe, e beneficiaram de uma capacitação para aprenderem a fazer qualquer coisa para ajudarem aqui em casa, nessa formação receberam equipamentos para começar um negócio, mas aqui entre nós é difícil fazer alguma coisa porque as pessoas não compram.”
Uma situação confirmada pelo secretário do bairro, Fernando Árabe, que explicou que apesar dos filhos terem habilidades, muitas vezes os nativos não confiam e optam em aderir os trabalhos feitos por pessoas já conhecidas localmente.
“Eles não entendem que os nossos filhos têm técnicas para fazer certas atividades, preferem encomendar trabalhos somente com os que já tem confiança, e assim mesmo tendo formação conhecimento e equipamentos não há clientes.”
E os problemas só aumentam com a falta de posto médico no centro
Aquando da abertura do centro de Reassentamento, o governo criou condições para que as crianças e a comunidade do centro tivessem por perto um posto de saúde, entretanto em Novembro de 2024, um vendaval assolou a área e consigo levou algumas residências incluindo a única tenda que servia de unidade sanitária para os deslocados.
Uma situação que obriga os deslocados a percorrer quatro quilómetros para ter assistência médica na sede do posto administrativo e o problema agrava-se quando as crianças adoecem de noite.
O secretário do bairro, Fernando Árabe, explicou que em Novembro de 2024 o centro foi colhido de surpresa com uma tempestade que fustigou todas as residências, incluindo o único posto médico. Desde lá até então, não foi reposta a tenda onde eram assistidos os doentes.
“Tínhamos uma tenda bem no meio do centro que nos ajudava, mas desde que veio aquele vendaval que destruiu quase tudo ficamos assim, sem o posto, estamos a passar muito mal com as nossas crianças, sempre que caem doentes temos que fazer uma ginástica a pé para a vila ou então alugar um táxi mota e sem dinheiro não é fácil.”
A situação tira o sono dos deslocados, uma vez que a província enfrenta uma crise de cólera e temem que os seus filhos sejam infectados, por isso, pedem a reposição do posto médico.
“Estamos a pedir que o governo venha olhar por nós, estamos desde Novembro nessa situação, já pedimos ajuda ao governo, mas nada fazem, nossas crianças estão a passar mal,” disse Julieta Francisco que por acaso, na altura da reportagem, encontrava-se com o seu filho de 8 anos doente.
Parece que há “luz verde” para a reposição do posto
Apesar de o governo local ter confirmado que a falta do posto médico tem criado transtornos não só aos deslocados, mas também a própria estrutura, sem avançar datas, garantiu que estão a ser criadas as condições para a construção de um posto de raiz naquele local.
“Nós tínhamos um posto que estava a funcionar normalmente, mas houve vendaval que acabou destruindo a tenda que tinha sido montada. Já estamos a trabalhar no sentido de devolver o posto médico aos deslocados, mas desta vez, será construído um edifício que vai atender as crianças, e não só”.
Enquanto isso, UNICEF avalia positivamente a intervenção feita
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e seus parceiros providenciaram, inicialmente, nos primeiros dois anos, assistência humanitária para as famílias deslocadas no centro de reassentamento de Corrane.
O coordenador do UNICEF em Nampula, Baisamo Marcelino, explicou que a organização sempre esteve envolvida no processo desde a criação do Centro, o que para eles foi positivo por se tratar de uma responsabilidade partilhada.
Numa primeira fase, foi criada uma equipa que tinha a missão de fazer uma triagem de crianças que estavam ou não acompanhadas, uma vez que na altura, muitas ficaram perdidas dos seus parentes e outras perderam seus pais durante o terrorismo.
“Tivemos uma equipa que fez a triagem de crianças não acompanhadas e em que famílias estavam enquadradas, tivemos um pacote que nós consideramos o mínimo para que a criança pudesse se sentir minimamente acolhida. Naquela altura do COVID tínhamos, também, uma equipa de saúde para cuidar daquelas crianças”.
Contudo houve a necessidade na altura de, em parceria com o governo, garantir todos os serviços básicos e sociais naquele local, por forma a que as crianças e a comunidade de deslocados se sentissem acolhidos.
Na altura, o UNICEF construiu cinco salas de aulas convencionais e um bloco administrativo na escola de foram, igualmente, construídas cinco salas de aulas na escola primária de Mucupace que beneficiou 80% das crianças deslocadas, mas também os nativos.
“Foram dois anos de muito trabalho e nós como UNICEF fizemos a parte que nos cabia. E passados dois anos dissemos que Corrane já não faz parte da resposta humanitária, mas sim do processo de desenvolvimento, aquelas pessoas já foram integradas, os problemas que surgem são iguais aos problemas das outras famílias da comunidade e as soluções que forem a encontrar também são iguais”.
A província de Nampula chegou a ter cerca de 65 mil deslocados, maior parte destes acolhidos nos distritos de Meconta, Nampula, Nacala e Eráti. (Texto: Ângela da Fonseca *Fotos: Hermínio Raja)