Nampula (IKWELI) – Os familiares das vítimas que perderam a vida por baleamento de agentes da Polícia da República de Moçambique (PRM) durante as manifestações da passada quarta-feira (13), no bairro Namicopo nos arredores da cidade de Nampula, exigem justiça pela morte dos seus ente-queridos, uma vez que estes não se encontravam a manifestar e alguns deles estavam nos quintais das suas casas e outros ainda nos seus postos de trabalho.
Trata-se de um acto que se deu após o arranque da 4ª fase das manifestações convocadas pelo candidato Venâncio Mondlane, o qual reivindica vitória nas eleições de 9 de Outubro passado.
Naquele fático dia, a PRM disparou contra 7 pessoas, sem razão aparente, pois a maioria foi atingida porque a polícia invadiu as suas residências e, à queima-roupa, tratou de tirar a vida dessas vítimas, com maior destaque para adolescentes e jovens.
Tal como aconteceu com o filho da Rabia Francisco que, naquele dia, quase ao findar da manhã, recebeu informações de que o seu primogénito, Beto Abdul Fidaussene, tinha o seu corpo sido “regado” com cerca de 10 balas e abandonado no local como se de um criminoso se trata-se.
Antes disso, Rabia não sabia que naquele massacre de balas o seu filho também havia sido atingido, pois estava apenas a consolar a sua vizinha que acabava de perder o irmão vítima de baleamento.
Inconsolável e incrédula no que acabava de ouvir e ver, Rabia procura por explicações que levaram a PRM a matar o seu filho mais velho de 20 anos de idade “sem do e nem piedade”.
“Ainda a consolar aquela mana, alguém vem para me dizer que o meu filho também estava no grupo, não acreditei. Meu filho não estava na manifestação, se és mãe compreendes o que te estou a dizer, ouvir que seu filho foi morto parece um bandido? Ou ladrão, nem um ladrão morre daquela maneira, meu filho foi assassinado”.
Rabia conta que os sonhos do filho foram travados por 10 balas, pois o mesmo encontrava-se a fazer a 11ª classe e tinha planos de entrar para a Academia Militar.
No mesmo local onde perdeu a vida o jovem Beto, igualmente foi crivado de balas um taxista, deixando assim duas crianças menores de idade e esposa a deriva, visto que era o único provedor da família.
Sua irmã, Neninha Jate Abudo desolada com o desaparecimento físico do irmão que tinha 32 anos de idade, procura por respostas que a possam fazer perceber o comportamento daqueles que deviam garantir a segurança das pessoas.
“Eles balearam meu irmão mortalmente, uma pessoa que estava indefeso, não tinha pedra, não tinha nada e não estava no local onde estava a se promover a marcha, estava num quintal sentado com os amigos. Entraram [agentes da polícia] e balearam todos que estavam ali, regaram aquelas pessoas, parece que estavam a roubar. Mataram meu irmão”.
Neninha revelou que no dia do sucedido, o jovem havia revelado a irmã que acabara de comprar um espaço, uma vez que seu maior desejo era ter casa própria para si e sua família.
“Sem saber que era última conversa que estava a ter com ele. Eu questiono por que é que não pegaram a eles para a esquadra, para averiguar se estavam na manifestação ou não, meu irmão não reagiu nem nada, balearam na barriga e perdeu a vida no local. Eu quero que o Estado seja responsabilizado, ele morreu e deixou crianças menores, quem vai cuidar? Todos nós somos desempregados”.
No mesmo local, foi igualmente alvejado senhor Albino Trindade, tendo sido encaminhado ao Hospital Central de Nampula (HCN), com ferimentos graves nos dois membros inferiores, tal como explicou a sua filha Ngamo Trindade.
“Meu pai estava na tal casa a conversar com os amigos, eram cinco, não estava na manifestação. Na perna esquerda levou dois tiros e na direita um tiro, foi levado ao hospital pelo irmão e minha mãe, a polícia não ajudou. Assim meu pai não consegue caminhar, faz tudo onde está”.
De acordo com a jovem, seu pai é trabalhador por conta própria, com o actual cenário, não sabe como serão os dias de hoje em diante.
“Ele vende capulanas, agora o negócio está parado, assim estamos a sobreviver de pessoas que quando vem visitar trazem algo”.
Quem, também, escapou vivo da fúria da PRM é Jorgito, adolescente de 15 anos de idade, que foi atingido em um dos membros superiores.
Já no leito familiar, e com poucas palavras, contou ao Ikweli que não consegue tirar da mente o que aconteceu naquela quarta-feira (13), sua rotina tem sido extremamente difícil, devido ao ferimento que tem em seu braço.
Enquanto isso, Isac Augusto, uma das pessoas que esteve no local do “massacre”, disse ter escapado graças a força maior de Deus, que não quis que nada acontecesse com ele.
O mesmo explicou ao Ikweli que, na companhia dos outros que foram brutalmente assassinados pela PRM, estavam apenas na rua à assistir as manifestações, sucede que, quando a polícia apareceu para dispersar as pessoas ele e mais quatro pessoas se refugiaram para um quintal próximo, tendo sido perseguidos e baleados.
“Eles deixaram de seguir quem estava a manifestar e vieram directamente nos atirar aqui neste quintal, onde foram baleadas quatro pessoas, dois morreram no local e um foi perder a vida no hospital. Eu seria o primeiro a ser baleado, mas Deus não quis que isso acontecesse, mas vi tudo que aconteceu naquele dia, eram cerca de seis polícias”.
“A polícia está a assassinar os cidadãos”
O activista e defensor de direitos humanos na Rede Moçambicana dos Defensores de Direitos Humanos (RMDDH) a nível de Nampula, Gamito dos Santos, partilhou que desde o arranque das manifestações em protesto aos resultados eleitorais no país havido no passado dia 09 de Outubro, mais de 29 pessoas perderam a vida vítimas de baleamento causados pela polícia, na capital do norte de Moçambique.
De acordo com a rede, só na cidade de Nampula, foram baleadas mortalmente 12 pessoas, sendo que os distritos de Mogovolas, Murrupula e Namialo [Meconta] registaram 4 óbitos, Nacala, Mecubúri 3 e em Moma 2, respectivamente.
Vale recordar que de acordo com o chefe das Relações Públicas no comando provincial da PRM em Nampula, Dércio Samuel, tais mortes por baleamento não devem ser incumbidas a polícia local, tendo declarado ainda, em uma conferência de imprensa, que os agentes não estão a usar balas verdadeiras para dispersar as pessoas.
Uma declaração que, para Gamito dos Santos, a PRM está a tentar omitir que está a assassinar cidadãos indefesos, sob ordens superiores, por isso entende que os agentes estão a perder credibilidade na sociedade, por estar a enganar as pessoas.
“As mortes ao nível da província, com estas 7, chegam a somar 29 pessoas assassinadas, digo isso porque a polícia está a matar a sangue frio. É triste que a PRM esteja a omitir, dizendo que não matou ninguém e não usou balas verdadeiras, mas há casos concretos em que até os jornalistas chegaram às famílias. O exemplo é Namicopo, há pessoas que perderam seus ente-queridos, mas a PRM continua a recusar, então, não faz sentido que a polícia seja levada a sério porque anda a mentir e a enganar as pessoas”.
Por conta disso, o activista garantiu que a RMDDH pretende intentar um processo-crime contra o Estado moçambicano, por forma a garantir que este seja responsabilizado pelos actos criminais que os seus agentes têm vindo a cometer contra os cidadãos.
“Estamos a assistir o nosso Estado de direito democrático a ser pontapeado, desqualificado e a ser retirado deste ponto de democrático para autoritário, estamos a ter um Estado que está a assumir de viva voz que temos que ter um Estado monárquico ou de anarquia que algum momento é preocupante para nós como defensores dos direitos humanos. Como rede estamos a reunir elementos e nós vamos levar os autores morais e materiais a barra da justiça. Se o Bernardino Rafael, desafiou dizendo que todos vamos ao Tribunal Penal Internacional, nós também vamos para lá”
A garantia constitucional
Após uma breve pesquisa feita pelo Ikweli na “Lei mãe”, neste caso a Constituição da República de Moçambique (CRM), foi possível verificar que no seu artigo 58 abre espaço para que o Estado moçambicano seja responsabilizado pelas acções protagonizadas pelos seus agentes.
Nesse artigo que versa sobre o direito a indemnização e responsabilidade do Estado, o seu número 1 avança que “a todos é reconhecido o direito de exigir, nos termos da lei, indemnização pelos prejuízos que forem causados pela violação dos direitos fundamentais”, prosseguindo no número 2 que “o Estado é responsável pelos danos causados por actos ilegais dos seus agentes, no exercício das suas funções, sem prejuízo do direito de regresso nos termos da lei”.
Um ponto confirmado pelo presidente do Conselho Provincial da Ordem dos Advogados de Moçambique em Nampula, Isidro Júnior, que considera haver espaço para que diante das violações dos direitos humanos as famílias submetam um processo-crime no Ministério Publica, por forma a exigir que haja responsabilização do Estado pelos actos cometidos por seus agentes.
“O que é difícil é encontrar o agente que tenha atingido mortalmente essas pessoas e como não conhecemos o único espaço que existe é apenas para responsabilidade do Estado que vai culminar com o pagamento de uma indemnização, as famílias vão ter que procurar uma instituição de justiça, mas o mais fácil é procurar alguém que possa-lhes ajudar, neste caso um advogado que poderá explicar os passos a seguir”.
O que esperar de uma justiça lenta?
É do conhecimento que várias são as vezes em que agentes da PRM envolvem-se em situações de extrema violência, quando o assunto é garantir a ordem e tranquilidade públicas, a título de exemplo foram os actos perpetrados aquando da COVID-19, onde os cidadãos foram brutalmente espancados, baleados e assassinados pela pelos agentes sob a justificativa do descumprimento das medidas de prevenção do vírus.
Em 2023, cidadãos foram, em Nampula, retirados o direito à vida, tudo porque estes encontravam-se a contestar os resultados das eleições autárquicas, a semelhança disso, neste momento, o país assiste e vive momentos em que vezes sem conta a polícia é vista a usar a força excessiva para conter os manifestantes, excessos que culminam em mortes, entretanto, nada é feito.
A prova disso é que o Centro para a Democracia e Direitos Humanos (CDD) submeteu um processo-crime à procuradoria, para exigir a responsabilização pelas mortes aquando das manifestações nas eleições autárquicas, mas um ano depois o processo não avançou.
Tal como revelou a representante do CDD em Nampula, Palmira Revula, que acredita que o processo tenha sido arquivado pois, em Março do presente ano, a procuradoria encaminhou o caso para o SERNIC. (Ângela da Fonseca)