Nampula (IKWELI) – Em Moçambique, e no mundo em geral, há um grupo de profissionais que mantém em funcionamento serviços que passam despercebidos pela maioria da população. Muitas vezes por ela obrigar o contacto directo com os mortos.
São os trabalhadores dos cemitérios, morgues e agências funerárias. Diariamente, esses trabalhadores lidam com a morte de forma directa, pois garantem a limpeza, organização e sepultamento dos corpos. Entretanto, apesar da importância do seu trabalho, enfrentam o estigma, exclusão social e sobrecarga emocional.
Hoje, 1° de Maio, o mundo pára, para celebrar o Dia dos Trabalhadores. E nesta edição, o Ikweli traz estórias de profissionais que lidam todos os dias diretamente com os mortos.
Há 10 anos como agente de serviço na morgue do Hospital Central de Nampula (HCN), Caciel Fernando explica que caiu no sector após ter sido retido dos serviços de radiologia, numa rotina de rotatividade que o hospital tem abraçado nos últimos tempos.
Nessa altura, mesmo sem experiência, Fernando revelou ter encarrado com normalidade o seu novo trabalho.
“Eu sou homem. Por isso, quando fui colocado aqui, não tive medo”.
Por não ter medo, a fonte explicou que logo no início adaptou-se a rotina diária de receber corpos, fazer o registo e encaminhar as câmaras frigorificas devidamente identificadas.
“As pessoas as vezes pensam que é estranho, mas não é. O que devemos fazer é, aceitar e fazer aquilo que está em frente de si. Muitas vezes se fores a trabalhar com muitas imaginações na cabeça não serás capaz de fazer devidamente o seu trabalho”.
A fonte revela ter tido contacto com 15 corpos provenientes de um acidente de viação, “e eu estava sozinho, tive que remover todos os corpos do camião para as câmaras Já recebi também 21 militares e não havia espaço na casa mortuária, e os corpos ficaram em todos corredores”.
Por estar num sector que lida constantemente com os mortos, a fonte disse ter tido contacto com pessoas que tinham medo de aproximá-lo, “mas nós já estamos habituados”.

Fernando Maçanica, proprietário de uma agência funerária há 19 anos, conta que decidiu abraçar a área porque notou que na sua cidade, neste caso Lichinga, província do Niassa, as famílias enlutadas enfrentavam diversas dificuldades para adquirir um caixão.
Entretanto, mesmo com a iniciativa, conta que sofreu estigma e represarias por parte da população, assim como da própria família.
“Para a sociedade, eu queria enriquecer com o nosso dinheiro? Dinheiro de falecimento? E eu sentia, porque até diziam que um dos caixões vai ser dele ou familiares dele e aí vai sentir o problema de ter uma agência funerária”.
Impacto psicológico da actividade

O psicólogo clínico do Hospital Central de Nampula, Armando Cumbi explicou que os profissionais dessa área carregam consigo uma sobrecarga que enfastia a mente, podendo desenvolver o que chama de síndrome de burnout. Aonde a pessoa apresenta um estado de exatidão física emocional e mental resultante de um estresse crónico no trabalho.
“Quando isso acontece a pessoa está vulnerável pode desenvolver vários sintomas como a depressão, ansiedade e vários outros transtornos e até outros ainda graves se o profissional não procurar uma ajuda”.
Segundo a fonte, quando isso acontece, muitos deles podem recair no consumo de substâncias psicoativas, por forma a encarrar o trabalho que faz.
“Estou a falar do consumo excessivo do álcool. As vezes nos perguntamos porquê que quase todos que trabalham na casa morgue tem tido esse comportamento de alcoolismo e de abuso de substâncias psicoativas. Mas se formos aprofundar podemos perceber que ele encontra para lidar com estresse. Eles lidam com a dor dos outros sem espaço para elaborarem a sua própria carga emocional. São invisíveis até nos seus sofrimentos”.
Segundo avançou que a comunidade classifica os profissionais dessas áreas como anormais, reforçando o estigma e exclusão social destes.
“Porque acreditamos nós que não é fácil uma pessoa normal fazer aquele tipo de trabalho e acabamos rotulando-os, muitas vezes achámos que não podemos estar em ambientes onde eles estão, não podemos tocá-los porque aparentemente acaba de tocar um morto (…) isso é possível acontecer tanto internamente como também com os vizinhos do bairro”.
Especialista defende a criação de políticas que valorizam os profissionais
Durante a entrevista, o especialista revelou que no HCN houve casos de trabalhadores da morgue que quase foram afastados devido não só pelo consumo excessivo de álcool, mas que também devido ao esgotamento do trabalho desenvolveram depressão.
“Já tivemos. Primeiro foi aquilo que nós chamamos de absentismo, depois foram problemas relacionados com esses consumos, talvez já estavam a sofrer sanções porque há procedimentos que devem ser tomados. Mas como sector demos o nosso subsídio porque compreendemos melhor a situação (…) a nossa intervenção acabou minimizando a sanção que este profissional iria receber se não tivéssemos feito a nossa intervenção. Sugerimos que houvesse rotatividade e no novo sector onde ele se encontra, está a trabalhar normalmente”.
Por isso, defende que é necessário garantir apoio psicológico, melhores condições de trabalho e reconhecimento social para esses trabalhadores.
“Precisamos de políticas públicas que valorizem esses profissionais. Eles prestam um serviço essencial que toca diretamente na dignidade humana. Eles precisam desse apoio como uma medida de prevenção porque a sua profissão é muito delicada”.
Além do desgaste emocional, esses trabalhadores também lidam com o preconceito. Muitos relatam ser evitados em convívios sociais após revelarem suas profissões.
“Quando digo que trabalho no cemitério, as pessoas mudam de assunto ou se afastam”, conta um dos entrevistados.
Apesar das adversidades, muitos profissionais demonstram orgulho e resiliência. “Nós damos o último cuidado às pessoas. É uma forma de respeito”, afirma uma auxiliar da morgue.
O estigma e a exclusão é outro peso que Victor Alberto, técnico da morgue há seis anos, carrega, entretanto, relata que por vezes é evitado por vizinhos e conhecidos.
“Faço levantamento dos corpos que dão entrada. De princípio foi difícil para a minha família aceitar, porque antes eu estava a trabalhar no banco de socorro, mas com o tempo foram aceitando. Algumas pessoas quando digo que trabalho na morgue, ficam admirados pensam que é um trabalho anormal por vezes se afastam.
“Eles são rotulados como trabalhadores marginalizados”
O professor de sociologia da Universidade Rovuma, Óscar Naholopa, começou por afirmar que o trabalho desempenhado por esses profissionais é fundamental para a sociedade, mas são ignorados e colocados na classe de trabalhadores marginalizados e sem consideração social.
“A nossa sociedade não os considera. Não lhes da o devido valor. Eles trabalham com os nossos entes queridos a partir da morgue ate aos cemitérios. Ele pertence a uma classe se nós quiséssemos dizer, de trabalhadores marginalizados, mas enquanto exercem uma atividade fundamental que nenhum de nós poderá escapar que é a morte”.
De acordo com o sociólogo, o preconceito entre outras praticas de desprezo nota-se com maior frequência em zonas urbanas.
“No campo onde não há uma clareza na divisão social do trabalho, há maior solidariedade nessa área. Mas quando vamos aos centros urbanos eles recebem uma recompensa irrisória. Trata-se de uma tarefa delicada porque expõem-se a todo tipo de risco e em contrapartida não são reconhecidos”.
Óscar defende a profissionalização do trabalho

O sociólogo defende ser urgente a criação de políticas que profissionalizam o trabalho para que tenham melhores condições de higiene, bem como a valorização e o destaque esperado para que possa superar certos preconceitos.
“Se não existissem essas pessoas que têm a coragem de cuidar dos nossos entes queridos, nós teríamos uma situação complicada, uns caus totais, teríamos mortos sem ninguém para cuidar deles. Eles deviam ser reconhecidos e recompensados com uma mensalidade condigna para cuidar dele e da sua família. Por exemplo se eles forem a aparecer nós nos afastamos ou rimos deles porque achamos que o trabalho que eles fazem não é uma profissão. Mas exercem uma tarefa fundamental e indispensável, era bom que integrássemos os nossos irmãos como qualquer outra profissão que existe na sociedade”.
Nessa reportagem, buscamos elucidar a sociedade que, esses profissionais apesar dos desafios estão sempre ali, entre o fim da vida e o começo do luto, cumprindo um papel que poucos reconhecem, mas todos, um dia, precisarão.
Os trabalhadores das morgues, cemitérios e agências funerárias, são a face esquecida de uma sociedade por isso, dar-lhes a voz, cuidado e dignidade neste dia é mais que um ato de justiça é um dever social. (Ângela da Fonseca)