Pemba (IKWELI) – Os problemas de fiscalização da zona costeira da província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, têm estado a contribuir para o recrudescimento do contrabando do pescado para países vizinhos, sobretudo a Tanzânia, como também o aumento da pesca ilegal incluindo em zonas de proteção, como é o caso do Banco de São Lázaro.
Trata-se de uma realidade que se arrasta há longos anos, tanto que uma quantidade inestimável de pescado, com destaque para o polvo, foi contrabandeada por cidadãos tanzanianos em conivência com moçambicanos, além de outros estrangeiros que se aproveitam da fraca fiscalização para pescar no Banco de São Lázaro, reservado apenas para pesca desportiva à turistas que escalam para usufruir das maravilhas do Arquipélago das Quirimbas.
Fenias Muhate, proprietário da empresa Peixe Bela Vista, conhece bem a costa moçambicana e foi convidado numa Reflexão Online, organizado por vários intervenientes do mar em Cabo Delgado sobre o dia Mundial da pesca celebrado a cada 30 de novembro. Este denunciou a falta de capacidade de fiscalização e permitiu que pescadores de países como Comores e África do Sul pesquem a bel prazer no banco de São Lázaro durante longos anos.
“Felizmente faço pesca recreativa, desde a Ponta de Ouro até Cabo Delgado. Especificamente em Cabo Delgado, mais de 15-20 anos que está se a fazer a pesca de forma ilegal no Banco São Lázaro, não temos capacidade de controlo, as poucas pessoas que lá foram, sabem que, as pessoas das Comores, estão lá a pescar, não há controlo, não sabemos o que apanham. Temos uma situação também da pesca desportiva em que há barcos estrangeiros, mesmo atracados neste momento em Pemba, trazem turistas, que vão a pesca, os valores são pagos fora, não entra essa cadeia de valor de forma completa na província ou no país, e depois temos a situação da pesca artesanal. Os estrangeiros apanham o peixe, não há controlo, cortam em filetes põem nos coolmans e vão embora, para África do Sul ou para Suazilândia”, denunciou.
Fenias Muhate disse, ainda, que a pesca ilegal aliada à factores de fraca fiscalização, também, afecta o sul do país, por exemplo, a província de Maputo.
“Por exemplo aqui em Maputo, nós temos um pasto Almirante leite que está a 130 milhas de Maputo, e neste momento está a ser publicitado na África do Sul, barcos que são de Durban vão fazer pesca desportiva lá dois ou três dias, sobem fotografias nas redes sociais e nós não temos controlo sobre isso, dentro das nossas águas interiores, e se nós fizéssemos ao contrário, estariam nossas embarcações presas, temos experiências disso. Então, eu levantei essa questão à ministra das Pescas também, no seminário e demais pessoas que estavam lá. São muitos problemas que temos na fiscalização e vai nos permitir perceber porque esse declínio de stock pesqueiro, podemos dizer por causa dos chineses que estão cá, mas podem existir outros factores, climáticos podem ser. Estas informações eu não ouvi dizer são informações que vejo dia-a-dia”, argumentou Fenias Muhate.
Bonifácio Manuessa, outro participante nessa reflexão, também tem conhecimento do contrabando do pescado, com destaque para o polvo que é levado para a Tanzânia e que supostamente de lá é exportado sob chancela daquele país.
“A questão de captura no norte de Moçambique, a minha preocupação reside na certificação, portanto, é uma zona com muita abundância do polvo, mas o que acontece é que atravessa a Tanzânia e chega no interior como vindo da Tanzânia. Portanto aí em termos de cadeia de valor o país é que sai a perder, é preciso também analisarmos como é que as redes sobre estas questões funcionam, porque também se traduz numa pesca ilegal. Pesca ilegal quando o produto sai e vai ter a verificação dum país vizinho no mercado internacional isso é pesca ilegal, portanto, o produto chega lá como sendo das águas tanzanianas, mas, no entanto, é moçambicano”, anotou esta fonte.
Um antigo pescador, que frequentou maior parte das ilhas de Cabo Delgado, também confirma que muita quantidade de polvo foi contrabandeada para Tanzânia. Outra quantidade era vendida aos tanzanianos e eles próprios usaram artes pesqueiras não recomendadas para apanhar quer o polvo, quer o peixe.
“Deixa polvo, mas, também peixe, eles usaram explosivos para matar os animais, muita quantidade de polvo, de peixe, foi a Tanzânia. Pior ainda os tanzanianos eram bem recebidos, pela população local, e muitas vezes acontecia sob olhar das autoridades. É arrepiante, nós em Mocímboa da Praia vimos isso, os chefes viam isso, mas sinceramente eles deixaram e aconteceu”, contou Jabo Momade Chafim, de 56 anos de idade.
Entretanto, “as ilhas Muamize ou Vamize, Muissune são alguns dos locais onde eles estavam, muitos deles, pescam e se calhar até hoje em dia”, acrescentou a fonte.
Na aldeia Pequéué, posto administrativo de Quiterajo, distrito de Macomia, também, saiu muito polvo. “Não sei se era para Tanzânia. Na zona de Kulansi, um dos principais centros de pesca de Macomia, também saiu muito polvo, não sei se os operadores que compravam tinham licença para isso ou não, mas na verdade, nós vimos e o governo do posto ou distrito sabia”, disse um então residente hoje deslocado em Pemba devido aos ataques terroristas.
Um agente de fiscalização pesqueira que negou ser identificado, revelou que tem havido muito medo de interpelar alguns operadores no comércio de pescado, incluindo o polvo. “Isso porque quando a gente decide reter e agir dentro da lei, você recebe chamada de cima, eu já recebi várias vezes e a pergunta é se não quer perder emprego deixa o carro seguir, então você não tem como, mas a bem da verdade, os estrangeiros, esses tanzanianos, levaram muito produto moçambicano para lá, sem que o país tivesse qualquer vantagem”.
O histórico de pesca ilegal na área de conservação em Cabo Delgado
Na província de Cabo Delgado, a pesca ilegal é uma realidade bastante antiga. Em 2018, por exemplo, cinco cidadãos estrangeiros foram flagrados a capturar lagosta viva em áreas do Parque Nacional das Quirimbas. Destes, quatro eram de nacionalidade tanzaniana e um chinês, conforme tinha noticiado a Rádio Moçambique, emissora pública nacional.
Em Maio de 2023, uma tonelada de caranguejo vivo foi capturada por fiscais do Parque Nacional das Quirimbas quando estava a caminho da cidade de Pemba, de onde iria seguir à China. Os cidadãos moçambicanos envolvidos disseram que tinham sido mandados por um cidadão chinês que foi multado em 600.000,00Mt (seiscentos mil meticais).
Segundo o Centro de Integridade Pública, o país não leva a sério a questão da pesca ilegal.
Se antes o nome sonante no contrabando e pesca ilegal em Moçambique era apontada a China, segundo um estudo do Centro de Integridade Publica (CIP), Tanzânia, país vizinho a norte, também está alegadamente a fazer o mesmo, pescar e levar o produto ao seu país, a partir das águas marítimas da província de Cabo Delgado.
O CIP afirma, num estudo sobre a situação de pesca em Moçambique realizado em 2022, que o sector de pesca que chegou a contribuir com 20% no Produto Interno Bruto, e 50% de exportações, reduziu e viu a sua contribuição em queda brusca.
O estudo intitulado “As pescas em Moçambique: um sector vítima de má gestão e alianças promíscuas”, aponta falta de meios para fiscalizar os quase três mil quilómetros da costa, abrindo espaço para pesca ilegal.
Denuncia o CIP que o sector das pescas é um dos que não tem políticas de continuidade, cada governo ou ministro chega monta a sua estrutura de governação.
A organização apela um repensar do sector da pesca, para acabar com os conflitos de interesses.
Estima-se que nos últimos tempos, o país perde cerca de 70 milhões de dólares de pesca ilegal em cada ano.
Governo de Cabo Delgado reconhece problemas de fiscalização e admite contrabando de pescado
Sérgio José, do Instituto Nacional Oceanográfico de Moçambique, diz que a pesca ilegal no banco de São Lázaro é do conhecimento das autoridades, mas a falta de meios de fiscalização impede que acções concretas aconteçam.
“No banco de São Lázaro é do nosso conhecimento, aqui na província, que vem estrangeiros, vão lá pescar. É um importante centro pesqueiro lá, mas infelizmente nós não temos capacidade de fiscalização neste local. Temos a pesca desportiva que ele se referiu, eu vim aqui em Cabo Delgado em 2010, na altura tinha Matemo Lodge, funcionava e fazia essa pesca desportiva também, e recreativa, em que uma vez quando fui lá perguntar, ouvi que os turistas quando vêm fazem a reserva a partir da África do Sul, e vêm fazer actividade e vão se embora, e é essa questão que normalmente aqui na província não temos uma fiscalização directa”.
Em relação a captura ilegal e tráfico do polvo, Sérgio elabora que “praticamente essa questão do polvo aqui em Cabo Delgado, infelizmente nos anos que estamos a fazer esforços, nos últimos dias, vimos que há maior quantidade do polvo que ia para Tanzânia e era cotado lá como sendo da Tanzânia. Temos desafios da fiscalização, grandes desafios, para poder fiscalizar, que o polvo não vá lá que seja cotado aqui em Moçambique, então isso é grande desafio para nós aqui no sector, mas se calhar estou a ver entrada de mais outros colegas da área de fiscalização, exactamente eles podem contribuir sobre esses recursos que são contrabandeados para o país vizinho”.
Aurélio Sadiano, da Administração Marítima em Cabo Delgado, também admite que os problemas de fiscalização na costa daquela província têm sido um grande desafio. Exemplificou que dos turistas que visitaram a província havia até outubro apenas dez pedidos
“Em relação a fiscalização nós temos vindos a receber alguns turistas, só neste ano já recebi cerca de oito turistas, vindo de África do Sul e eles quando cá chegam apresentam-se a ADMAR e por sua vez nós emitimos licença, não para pesca para se deslocar até aquele local, Banco de São Lázaro, quase todos que vêm para cá, que escalam a nossa cidade têm ido para lá no banco de São Lázaro, mas acompanhamos com alguns pescadores que lá também se fazem alguns pescadores estrangeiros, neste momento já criamos uma equipe conjunta com a polícia costeira de modo a controlar, fazer o mapeamento dos turistas”, comentou Sadiano, o qual apontou que não há dúvidas que na zona norte de Cabo Delgado “há muita pesca ilegal, onde o pescado é contrabandeado para Tanzânia. Também é um dos nossos desafios tentar mapear esses locais, mas estamos a trabalhar de forma a estancar essa pesca ilegal”.
Esforços em curso
Aurélio Sadiano, delegado da administração Marítima (ADMAR) em Cabo Delgado, apontou que há grandes passos dados para que, num futuro próximo, as autoridades consigam minimizar a problemática de meios e técnicas de fiscalização.
“Em relação a fiscalização, eu só queria trazer aqui uma pequena informação, que estivemos aqui a trabalhar com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNIDOC), sobre o combate de pesca ilegal e tráfico de drogas, ao longo do oceano Índico, nos primeiros três meses de 2024 iremos ter cá o nosso posto de radionaval em Cabo Delgado, reabilitado e com todo equipamento moderno e teremos, também, uma sala de controle, uma sala das operações conjuntas onde fará parte a polícia costeira, a marinha de guerra, o INAMAR, o SERNIC, e a procuradoria, então estamos a trabalhar. E teremos também uma formação no mês de janeiro ao nível de Cabo Delgado, então aí teremos uma sala para monitorar a nossa costa e também temos desafios de aquisição de alguns drones e embarcações”, garantiu. (Amade Abubacar)