Violência terrorista em Cabo Delgado compromete a escolarização de milhares de raparigas

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Nampula (IKWELI) – O terrorismo que ocorre há cinco anos na província nortenha de Cabo Delgado, já privou a escolarização de milhares de crianças, adolescentes e jovens, principalmente do sexo feminino, as quais tiveram que se deslocar a procura de melhores condições de segurança.

A província de Nampula, que faz limite com Cabo Delgado, foi um dos pontos preferenciais das famílias que tiveram de abandonar as suas aldeias de natais. Neste ponto do país, a maioria fixou-se nos distritos de Meconta, Nampula e Nacala.

No relatório apresentado em 2022, o fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, na sigla inglesa), apontava para a existência de mais de 200 mil crianças fora da escola em consequência da guerra em Cabo Delgado.

Dados recolhidos pelo Ikweli, indicam que o processo de absorção das crianças em idade escolar nos diferentes subsistemas de ensino tem sido lento.

Informação do Governo de Nampula, que acolheu o grosso número de deslocados internos de Cabo Delgado, contabilizou, até 2021, a entrada de 65 mil pessoas, das quais 18.290 são meninas abaixo dos 18 anos de idade, um número que este ano reduziu para 10.000.

Deste grupo, uma parte significativa encontra-se no distrito de Meconta, cujo governo local diz ter reintegrado, em 2021, de 1ª á 12ª classes, nas suas escolas, um total de 1.426 meninas, um número indicativo, que mostra que em toda a província mais da metade das raparigas deslocadas encontra-se fora dos diferentes subsistemas de ensino.

O medo que ainda persiste, as mudanças de bairros, vilas e a falta de condições que incluem dificuldades para alimentação, fazem com que os pais e encarregados de educação não adiram ao retorno escolar das crianças.

Associado a isso, está o facto de ao nível do Governo, assim como das organizações que trabalham na defesa dos direitos humanos das raparigas, não haver programas específicos em curso virados ao acompanhamento da escolarização das raparigas deslocadas, ainda que estas representem um grupo vulnerável ao abandono escolar, gravidez precoce e uniões prematuras.

Diana Orlando, de 17 anos de idade, vem do distrito de Macomia e chegou ao posto administrativo de Namialo, no distrito de Meconta, em 2020. Quando saiu da sua terra natal frequentava a 10ª classe e de lá para cá não mais voltou a escola, alegando não haver condições se quer para as três refeições diárias. “Para ir à escola precisa ter dinheiro, primeiro tenho que pagar a declaração de bairro, depois pagar a matrícula. E também tem que ter dinheiro para material escolar, as fotocópias. Os meus pais não recebem e esta casa onde vivemos fomos emprestados, porque a dona vive em Corrane”, disse a adolescente.

Quem também fala de dificuldades de garantir a escolarização das crianças deslocadas é Judite Mpulanga, natural de Macomia, mãe de cinco filhos, duas das quais meninas de 12 e 17 anos de idade, respectivamente, que não estudam por causa da falta de condições. Em Cabo Delgado, as duas filhas frequentavam a 3ª e 6ª classe, mas actualmente não estudam e o seu marido, que era o principal provedor da família segundo contou, foi assassinado pelos terroristas e desde que chegou a província de Nampula vive de ajuda do Governo algumas vezes, e noutras ajuda na machamba de vizinhos e conhecidos para ganhar algum.

Agnela Crisanto, rapariga deslocada

“Em 2021 quando as crianças começaram a ser matriculadas na escola pensei em levá-las, porque nós como deslocados não estávamos a pagar, mas não tive como porque precisa comprar caderno, canetas, lápis e eu não tinha dinheiro decidi deixar assim sem estudarem, porque também não podia pôr uma a estudar e deixar a outra”, frisou.

O presidente da associação Kuendeleya, que trabalha na defesa dos direitos humanos, promovendo a educação das crianças e formação profissional dos adolescentes em Cabo Delgado, explica que o terrorismo degradou o sistema educativo no norte de Moçambique, e a situação é mais evidente nas zonas afectadas pelo conflito, onde ainda há receios de regresso a escola, pois apesar de algumas famílias terem voltado às zonas de origem ainda temem pela sua segurança e de seus filhos.

“Essa realidade, também é possível, notar nos centros de acolhimento, onde há ainda meninas sem estudar e quando questionamos porquê que não vão a escola os pais nos dizem que até podem levar as escolas, mas não se sentem seguros e o outro problema é que quando voltam da escola não têm o que comer e outras tem que trabalhar para o outrem e acabam explorando as crianças em trabalhos de adultos. Isso limita as crianças de ir à escola”, disse Gafuro.

O psicólogo Racho Pinto referiu que, no caso dos ataques terroristas que se vivem em Cabo Delgado, as crianças são as que mais sofrem e podem guardar em suas memórias situações que tenham assistido como assassinatos, fazendo com que tenham fobia intensa que vai afectar a socialização, incluindo ir à escola.

Para ele, é comum que os pais, incluindo as alunas, ainda sintam medo de voltar a escola, sobretudo em casos em que voltam as suas zonas de origem, como o que está a acontecer, dado o facto de que elas vão reviver as memórias dos ataques que passaram.

“O que acontece é que nesse grupo de deslocados, há crianças que até viram seus pais serem decapitados, então elas acreditam que, por exemplo, a escola pode não ser um espaço seguro e a quaisquer momentos podem estar perante um ataque violento”, explica o psicólogo, que acrescenta que o caso pode piorar gerando sentimento de raiva e vingança quando essas crianças não são assistidas por especialistas, daí que alerta para a necessidade de o acompanhamento psicológico ser constante.

Diante do medo dos pais, a sensibilização foi importante na reintegração escolar das meninas em   Meconta

O distrito de Meconta na província moçambicana de Nampula, foi um dos que recebeu maior número de deslocados internos. Foram pouco mais de vinte mil pessoas na sua maioria crianças, grande parte em idade escolar, o que trouxe vários desafios ao Governo local, que teve que se “desdobrar para que as crianças não ficassem sem estudar e de igual modo tivessem condições básicas”, disse o administrador do distrito, Melchior Focas, em entrevista ao Ikweli.

Segundo Focas, “do levantamento feito para que as crianças voltassem a estudar, alguns pais aceitavam, mas outros não, porque ainda estavam com medo, pensavam que as crianças não fossem regressar para casa, podiam ser raptadas, porque elas vinham daquela situação da guerra, estavam traumatizadas, certamente com insegurança pelos seus filhos. Este foi um momento mais complicado, e mesmo assim nós, como o Governo, dizíamos que não havia problemas de elas voltarem a escola e que juntamente com os professores íamos controlar as crianças e graças ao apoio das comunidades e parceiros conseguimos reintegrar um número significativo de crianças. E graças ao apoio dos nossos parceiros demos material escolar, kit de dignidade para às raparigas”. Focas lembra que, das cerca de 1.426 raparigas deslocadas reintegradas em 2021, 1000 foi no posto administrativo de Corrane e as restantes na sede do distrito e em Namialo.

Melchior Focas, Administrador do distrito de Meconta

E para responder o aumento de criança nas escolas, o governante explicou que com parceiros tiveram que construir e melhorar algumas salas de aulas em Corrane. “Este foi um momento muito complicado, porque tínhamos que receber, acolher, reintegrar e apoiar para eles se estabilizarem, foram momentos duros”.

O Ikweli conversou com algumas meninas reintegradas nas escolas do distrito de Meconta.   Anica Jamardine, de 13 anos de idade, natural do distrito de Mocímboa da Praia na província de Cabo Delgado, que faz parte das raparigas deslocadas que depois de fugir o terrorismo conseguiram voltar à escola.  Este ano frequenta a 4ª classe na escola primária de Namialo, no distrito de Meconta, região que a acolhe juntamente com os seus pais desde 2020, depois que a sua vila foi atacada.

Anica que começou a escola tardiamente, com 8 anos de idade, conta que quando chegou ao posto administrativo de Namialo, em Meconta, no ano 2020, tinha concluído a 2ª classe, e porque na altura o país estava a ser afectado pela pandemia da COVID-19 associado ao medo e a insegurança que ainda sentia, ficou dois anos 2020-2021 sem voltar à escola e só em 2022 a família decidiu que ela podia continuar com os estudos. “Quando quis voltar a escola não tive dificuldades, fui ao líder pedir uma declaração que confirmava que eu era deslocada e queria estudar, ele fez e eu levei a escola, lá foi inscrito o meu nome e comecei a estudar. Na altura não tinha documento, mas também não me complicaram porque já sabiam que sou deslocada. E estudo até hoje sem problema”, explica a adolescente.

Foi desta facilidade dos líderes que as irmãs Agnela Crisanto e Maria Crisanto do distrito de Muidumbe, de 17 e 19 anos de idade respectivamente, conseguiram voltar a escola. Maria Crisanto disse que “quando cheguei aqui em Namialo em 2020 não estudei por causa de corona e em 2021 e 2022, também, não estudei porque fiquei grávida e tinha que cuidar da criança, só no ano passado é que decidi voltar a escola e fui no líder, paguei 100 meticais para ter declaração e 600 meticais para ter vaga este ano no período noturno”.

Enquanto isso, a sua irmã Agnela Crisanto, que voltou a escola em 2021, contou não ter pago porque como deslocada havia uma orientação de que deviam pedir declaração de bairro ao líder para poderem voltar a escola.

“Eu levei o meu documento de bairro, apresentei na escola secundária de Namialo e fui inscrita para estudar, fiz a 11ª e agora estou na 12ª classe”, disse.

Para quem é mãe e encarregada de educação, chegar a uma província sem família onde menos conhecia e sem documentos e conseguir que sua filha estude é de agradecer. Quem assim diz é Amina Abu Chale, mãe de 4 filhos, três dos quais meninas de 9, 13 e 16 anos de idade respectivamente, acolhidos na sede do distrito de Meconta. “Quando chegamos aqui não tínhamos nem roupa, quando cheguei com meu filhos e marido em 2020 só tínhamos a roupa do corpo, não sabíamos onde íamos viver, mas o importante era sair da guerra e aqui fomos acolhidos, nos ofereceram roupa, minhas filhas matricularam, continuaram a estudar. Nós não tínhamos dinheiro para dar material escolar, mas apareceram pessoas e deram cadernos e uniforme”, disse Amina, que acrescentou que “apesar de que não tinham todo material escolar, elas estudaram e passaram de classe para a 2ª, 6ª e 8ª classes respectivamente.

Maria Crisanto, rapariga deslocada

UNICEF defende a necessidade de assegurar a continuidade escolar das raparigas para que se protejam da violência

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) faz parte da equipe de coordenação para a área de educação, onde as acções que foram desenvolvidas não tiveram uma distinção específica para as raparigas. No entanto, o que foi feito, segundo o Coordenador provincial desta agência em Nampula, Baisamo Juaia, foi assegurar que todos os deslocados passassem por triagem, actividade que permitiu notar que a maioria eram crianças em idade escolar, cuja maior preocupação foi assegurar, junto do Governo, que fossem reintegradas na escola. “Nesse processo de reintegração é possível ver com muita evidência o que aconteceu no distrito de Meconta, no centro de Corrane, embora seja difícil saber se a reintegração foi efectiva, mas o registo que foi feito procurava saber até que classe estavam estas crianças”, disse Baisamo que  afirma que o UNICEF quer assegurar a não descontinuidade da tarefa de estudar e, sobretudo, quando se trata da rapariga, a sua reintegração na escola é no seu entender, uma das formas de evitar a violência.

Baisamo Juaia, Coordenador do UNICEF em Nampula

Mas no caso das meninas que por várias razões não continuaram as aulas, Baisamo disse que foram reintegradas em outras actividades comunitárias e de desenvolvimento como comitês de saúde, teatros para mudanças de comportamento sociais negativos. “Esta foi uma estratégia que nós tomamos para que a reintegração dessas meninas não fosse apenas tomar em conta a componente de continuação das aulas, mas também naquilo que vai assegurar a promoção de condições de vida, principalmente em Corrane”.

O apoio do Governo

O Delegado do Instituto Nacional de Gestão de Risco de Desastres (INGD), em Nampula, Alberto Armando,  disse  que o Governo da província  definiu como prioridade a reinserção das crianças deslocadas no sistema de ensino, e embora não  exista um número exacto, mas tomando como base o centro de recenseamento de deslocados em Corrane, onde têm  o controlo directo, mais de 2.000 crianças frequentam diferentes sistemas de ensino localmente oferecidos e que, também, nos últimos dois anos beneficiaram de apoio em material escolar

“Em suma, em todos os distritos que acolhem deslocados oriundos da província de Cabo Delgado, as crianças em idade escolar foram inseridas no sistema de ensino”, disse Alberto que continuou explicando que “o fluxo de apoio em material escolar foi verificado entre os anos 2021/2022 que consistiu em uniforme escolar e material didático. Várias organizações como Helpo, Save the Children, Plan International, Irmãs da Igreja Católica, UNICEF, Actionaid, Sindicato Provincial de Jornalistas entre outras pessoas singulares e colectivas apoiaram em várias iniciativas. Em bom rigor, não é importante mencionar as organizações que apoiaram sob risco de deixar algumas entidades de fora, mas que tenham dado algum apoio. Para além de material didático, os apoios também se estenderam no melhoramento de infraestruturas escolares e provisão de serviços de saúde, água e saneamento no contexto de integração dos deslocados nas comunidades hospedeiras”.

Por outro lado, o chefe da repartição provincial de Gênero, Saúde e Desporto escolar na  Direcção provincial de Educação em Nampula, João João, diz  que ao nível da província as crianças foram distribuídas em 26 escolas, mas nos últimos dias nota-se movimentação de crianças em idade escolar que regressam a Cabo Delgado devido ao retorno das famílias para as suas zonas de origem, mas a maioria das crianças que voltam os seus encarregados tem pedido a documentação de transferência, de modo que continuem a escola nas suas zonas de origem. “Para nós não é desistência escolar, porque são apenas mudanças de província e nós nesses casos damos declarações de passagem, transferência do processo do aluno, mas o número das meninas que já voltaram não passam 20%”.

João João, Chefe da repartição provincial de Gênero, Saúde e Desporto escolar na Direcção provincial de Educação em Nampula

No entanto, o INGD contabiliza cerca de 5 mil raparigas que já regressaram às zonas de origem, desde Agosto do ano passado com os relatos do retorno da segurança. (Adina Sualehe)

*Esta reportagem foi produzida com o apoio da associação h2n, no âmbito do projecto ASAS

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