Nampula (IKWELI) – A exploração da mão-de-obra infantil no sector pesqueiro, com destaque para a pesca artesanal, é uma realidade indiscutível no distrito de Angoche, no norte do país, que ocorre com anuência dos pais e encarregados de educação.
Esta actividade é de risco, que se torna mais perigoso neste tempo em que o mundo regista uma pandemia global, cuja prevenção, os especialistas, recomendam o distanciamento social.
As famílias defendem que, mandar crianças para a pesca, é uma das formas encontradas para suprir as dificuldades económicas por que elas passam, mesmo reconhecendo os riscos.
Nas comunidades, há um consolo cultural que se cria para minimizar a dor das vítimas, aceitando-se que a tradição e os costumes dos seus antepassados devem continuar a ser praticados a fim de imortalizar a cultura local.
As vítimas são forçadas e estimuladas a praticarem esta actividade de risco, mesmo sem capacidade física e psicológica para o efeito. Em virtude disso, muitas crianças perdem a vida vítimas de afogamento, pelo facto de não terem habilidades para a natação. Igualmente, estas crianças, também, perdem a oportunidade de crescerem num ambiente próprio para a idade delas, sobretudo a frequência escolar.
A reportagem do Ikweli visitou algumas comunidades do distrito de Angoche, de onde recolheu histórias tristes e perplexas de crianças que adiaram a sua infância para se dedicarem a actividades pesadas, em clara violação dos seus direitos. A idade das crianças varia dos 6 aos 15 anos de idade.
Os mais novos ficam fora do mar, esperando o regresso dos barcos de pesca para ajudarem a puxar a rede. Os outros ainda vão para o mar, em canoas e pequenas embarcações.
Esta actividade ocorre, maioritariamente, no período nocturno, por isso, logo pelas primeiras horas de manhã, de caras felizes ou tristes, dependendo do resultado da faina, as crianças voltam para o convívio familiar.
O encerramento de estabelecimentos de ensino, também, concorre para uma maior exposição das crianças e exploração na actividade piscatória. As famílias, no lugar de manterem as crianças em casa para protegê-las da covid-19, mandam-nas para a labuta.
Amade Saíde, menor de 10 anos de idade, conta que começou a frequentar o mar como ajudante para puxar a rede e ganhar algum peixe. Este produto servia para suprir as necessidades alimentar da família do menor.
Órfão de pais, o pequeno Amade vive com a sua avó, que não dispõe de condições para sustentar a família, viu-se obrigado a abandonar a escola, onde frequentava a 3ª classe, para se dedicar a pesca.
Este menor tem a praia de Thamole como o seu centro de produção, e refere que “até as 4horas da manhã já estou aqui. Como ainda não tenho um barco de pesca pessoal, normalmente tenho usado os mesmos barcos dos colegas, depois da viagem sou dado a minha parte que outra vendo para comprar farinha de milho e a outra parte guardo para servir de caril’.
Zacarias Chalé, menor de 9 anos de idade, desenvolve a sua actividade de pescador na praia do Porto, na localidade de Serema. Ainda frequentando a escola, este menor dedica mais o seu tempo e esforço a pesca.
Esta vítima do trabalho infantil ganha, diariamente entre 30,00Mt (trinta meticais) a 60,00Mt (sessenta meticais), e por vezes a compensação é mesmo por produto.
“Meus pais não trabalham, e para nós conseguirmos comida tem sido um esforço grande para os meus pais. Então, sempre que posso venho ajudar os pescadores para me pagarem e ajudo um pouco na alimentação de casa, outra parte compro meus cadernos”, apontou Chalé, para depois acrescentar que “o dinheiro que ganho aqui serve para coisas mais importantes, que é a comida”.

Desprotegido, esta vítima comenta que gostava de ter, pelo menos, uma máscara para se prevenir da covid-19. “Infelizmente, não tenho máscara”, disse Zacarias Chalé, visivelmente triste.
Outros menores, inocentes, gabam-se que praticar a pesca é uma forma de honrar a masculinidade e a sua família. “Meu pai é que me leva, sempre, para aprender a pescar, para ser um grande pescador como ele e como o meu avô”, disse Chandes Mohamede.
A preocupação do Núcleo de Pescadores
Zero Atumane, presidente do Núcleo dos Pescadores de Angoche, em entrevista ao Ikweli, disse ser preocupação da agremiação que dirige o combate da exploração da mão-de-obra infantil no ramo.
Igualmente, esta fonte avança que muitas das pessoas que usam crianças na pesca, neste momento de pandemia global, não conseguem oferecer condições de prevenção e proteção aos petizes.
“Sou pescador desde cedo. A minha vida toda te sido na pesca, e tenho visto o fim de muitas crianças aqui na praia por afogamento, e isso piora nos tempos que a maré está forte. Temos participado casos de crianças que desapareceram na água, e até hoje não foram vistas e isso é lamentável”, avançou Atumane, certificando que “nem todas as crianças que se fazem a pesca são mandadas pelos seus pais. Há crianças rebeldes que vem a pesca sem a permissão dos pais, e nós acolhemos essas crianças e começamos a trabalhar juntamente com elas”.
As lideranças tradicionais e religiosas de Angoche, também, apontam factores culturais como o factor fundamental que motiva a aderência de crianças a pesca.
Muanjuro Ahamada é líder comunitário no bairro de Ínguri, e ao Ikweli disse que “as crianças daqui, desde cedo, são estimuladas a irem a pesca, principalmente os do sexo masculino”.
A luta é de todos
Tanto o governo, assim como organizações que trabalham na defesa e promoção dos direitos da criança, também, andam preocupados com esta situação da exploração da mão-de-obra infantil na pesca.
Cândido Ualuto, director dos Serviços Distritais de Actividades Económicas (SDAE) de Angoche, disse que o governo não sabe, ao certo, quantas crianças estão envolvidas nesta actividade. “A mão de obra infantil no sector pesqueiro, infelizmente, é uma realidade aqui no nosso distrito” confirmou a fonte governamental, para depois continuar que “a nós, como governo, nos preocupa o facto de mesmo em tempos de pandemia da covid-19 as crianças continuarem a ir à pesca. Alguns pais e encarregados de educação tem levado os seus filhos para actividade pesqueira e nos preocupa mais porque uns chegam até a ir no interior do mar, outros ficam para puxar a rede, outros transportam e vendem normalmente, embora exista uma legislação especifica que proíbe essas actividades alguns encarregados de educação continuam a levar as crianças no mar”.
Para reverter o cenário, o governo de Angoche, em colaboração com os Conselhos Comunitários de Pesca (CCP) tem vindo a sensibilizar o não envolvimento de crianças na actividade piscatória.
“Capacitamos os membros do CCP em matéria de legislação pesqueira com documentos legais para trabalharam com os pais e encarregados de educação na sensibilização dos mesmos, e com base nisso divulgamos os instrumentos que proíbem as crianças nas actividades de pesca”, fez saber Ualuto, para depois concluir que “chegou uma época em que as pessoas já estavam a acatar as mensagens de sensibilização, mas com a pandemia da covid-19 a situação piorou, porque as crianças estão sem fazer nada em casa e se refugiam na pesca”.

O coordenador da UNICEF em Nampula, Baisamo Juaia, lamenta o facto de existirem crianças que, no lugar de ficar em casa para se prevenir da covid-19, optam em ir ao mar para se dedicar a pesca.
“Olhando aquilo que são as possíveis razões, muitas das vezes o trabalho infantil é o resultado de violação de outros direitos”, disse a fonte.
Juaia aponta que o fim do trabalho infantil na pesca não tem fim a vista, mas apela que os esforços nesse sentido não parem.
Segundo o Inquérito do Orçamento Familiar (IOF) 2014/2015 a taxa de emprego infantil foi de 22% ao nível Nacional, sendo que 6.1% nas zonas urbanas e 28.6% nas zonas rurais. E a província de Nampula tem a taxa de 22.3%. (Texto: Elisabeth José *Fotos: Hermínio Raja)